Para o recém-eleito presidente da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal, ‘para evitar uma perda significativa do poder de compra e eventuais problemas de ruturas sociais o esforço tem de ser dividido entre empresas e Governo’.
No entender de João Vieira Lopes, a solução para atenuar a subida de preços exige respostas do lado do Governo em termos fiscais. No caso das empresas, deveria passar por uma redução ao nível do IRC e, para os cidadãos, ao nível do IRS. E deixa um alerta: «Caso contrário, corre-se sérios riscos de perdemos poder de compra, o que aliás já se está a notar». O responsável reconhece que, «tirando algumas exceções, em que as pessoas compram muito com receio de haver ruturas de produtos», já se está a notar alguma retração nas compras em algumas áreas e daí dizer que não compreende a atitude de açambarcamento por parte dos consumidores. João Vieira Lopes acredita que esta retração no consumo poderá ganhar maior contornos com o aumento da inflação e, como tal, mostra-se expectante em relação ao Orçamento de Estado. O presidente da CCP defende ainda a aplicação do IVA zero no pão e nos cereais e lembra que «o Governo tem feito algumas aberturas em termos de redução IVA, nomeadamente nas rações para animais e outros» e, por isso, acredita que será possível seguir esse exemplo «na área dos produtos essenciais, em que se justifica, pelo menos, baixar o IVA em determinados produtos básicos».
Esteve reunido esta semana em concertação social para conhecer as linhas gerais do Orçamento de Estado. Que expectativa tem?
O Orçamento vai ser ainda um pouco conservador em alguns aspetos macroeconómicos, nomeadamente na questão do défice e na gestão da política económica. Apesar de termos em conta que Portugal é um país endividado e que é necessário gerir essa situação com algum cuidado é certo que para haver um relançamento da economia que possa ter significado para o futuro tem que se aproveitar a flexibilidade que a União Europeia ainda dá, pelo menos, este ano em termos de défice. Não consideramos que fosse fundamental que o Governo se concentrasse excessivamente nestes padrões.
É a necessidade das tais contas certas que tem sido levada a cabo pelos anteriores ministros das Finanças?
Devia ter em conta a situação que vivemos neste momento, em que há uma ameaça de interrupções na cadeia de abastecimento, o aumento da inflação e a subida de preços num conjunto de matérias-primas, nomeadamente alimentares. Não é previsível que haja falta de produtos alimentares, mas o facto de os produtos que eram comprados na Europa – seja na Ucrânia, seja na Rússia – começarem a ser comprados nos Estados Unidos ou na América Latina tem influência nos preços, aliado à inflação que já se vinha a notar, mas que deverá acelerar ainda mais. Qual a questão de fundo que surge neste momento e que é o grande desafio ao Governo? Neste momento não devemos ter qualquer ilusão de que o tecido empresarial português não consegue acompanhar a inflação nos aumentos salariais, especialmente as PME e as microempresas que são o grosso do tecido empresarial e do emprego. Por isso, consideramos que o esforço para evitar uma perda significativa do poder de compra e eventuais problemas de ruturas sociais têm que ser divididos entre as empresas e o Governo. Na maior parte das empresas já se nota que os aumentos salariais estão acima dos últimos anos e acima da inflação esperada, mas não são suficientes para acompanhar a inflação a médio prazo, ou seja, estão acima da inflação atual. Isto quando esperamos, por exemplo, um encarecimento de 20 a 30% dos produtos alimentares.
Não há salários que resistam a estes aumentos dos preços…
Exato, mas da parte das empresas é procurar dentro do possível que consigam aumentar os salários acima dos valores que fizeram nos últimos anos. Mas não vai chegar para responder à inflação. Da parte do Governo terá que haver uma resposta, em termos de fiscalidade, quer para as empresas, ao nível do IRC e das tributações autónomas, quer para os cidadãos, no IRS. Caso contrário, corre-se sérios riscos de perdemos poder de compra, o que aliás já se está a notar. Tirando algumas exceções, em que as pessoas compram muito com receio de haver ruturas de produtos, em algumas áreas já se está a notar alguma retração na compra.
É a tal prática de açambarcamento que se assistiu desde o início da pandemia?
É uma situação um bocado psicológica, mas que não tem lógica. Essa questão do açambarcamento começou na Austrália, com o papel higiénico, e depois alastrou-se aos outros países todos.
E agora arrastou-se a outros produtos, como é o caso do óleo de girassol.
Mas é um exagero, porque não há uma previsão de uma redução significativa da cadeia de abastecimento. O risco maior é o aumento dos preços.
Quando diz que a solução por parte das empresas passa por aumentar salários acha que o tecido empresarial tem condições para o fazer?
Os contratos coletivos têm sido fechados e as empresas estão a chegar a acordo para aumentos salariais ao nível dos 2,5%,3% e 3,5%. A inflação no último ano não chegou aí e, neste momento, anda por esses valores, mas com tendência para subir. As empresas nesse aspeto já estão a fazer um esforço, agora compete ao Governo fazer o outro lado do esforço, que é criar condições fiscais para as empresas poderem investir, para as empresas reduzirem alguns custos e, em relação aos cidadãos, além daquelas medidas bastante incipientes quanto aos escalões de IRS terá de ser mais agressivo nessas alterações. Temos de evitar que haja uma situação não digo de recessão, mas de um crescimento muito abaixo daquilo que está previsto e que estava associado à recuperação da quebra da pandemia.
Vai ser difícil alcançar as metas de crescimento que tinham sido estabelecidas anteriormente?
Espero que o Governo no cenário macroeconómico que vai suportar o Orçamento tenha isso em conta.
Ainda esta semana, o Governo anunciou uma série de medidas para acautelar o aumento dos preços. São medidas suficientes ou deveria haver mais ambição?
Essas medidas vão no sentido positivo. Globalmente são interessantes. Ainda estamos a analisar o setor dos transportes, quer de mercadorias, quer de passageiros, para tentar ver se há medidas que precisam de ser eventualmente adicionadas. Agora, estas medidas não podem ser vistas como pontuais e curtas porque a nossa previsão e da maior parte das pessoas que estão a olhar para o mundo e para a economia é que existe o risco de haver um prolongamento grande do período de guerra na Europa. Estas medidas, como medidas de arranque, vão no sentido positivo, agora vamos ver como vão ser aplicadas: se de forma prolongada ou se só questões de curto prazo.
Depois de dois anos de pandemia enfrentamos uma guerra. É tudo o que não precisávamos para o setor…
As empresas estão muito fragilizadas. O setor do comércio é um bom barómetro, porque antes de repercutir em toda a economia, o que se nota no comércio é que se as pessoas deixam de comprar isso depois tem efeitos a montante, quer na indústria, quer nos serviços. É uma situação complicada. Os dados que temos neste momento mostram alguma retração, ainda não é uma retração muito significativa, mas os riscos de se ampliar são grandes.
As empresas ainda não recuperaram da crise pandémica e já são confrontas com esta nova ameaça…
Algumas das medidas que o Governo avançou foi na área dos empréstimos, é claro que os empréstimos são necessários para muitas empresas, mas as empresas saíram do período da pandemia bastante endividadas, quer empréstimos para tesouraria, quer para o faseamento de pagamentos à Segurança Social e ao Fisco. É importante que essas medidas existam, mas a prioridade não pode ser as linhas de crédito. A prioridade passa por avançar com medidas que promovam o investimento, que ajudem a capitalização das empresas e permitam de certo modo manter o poder de compra e manter os custos.
O fim das moratórias também não ajudou…
Claro, por isso é que o endividamento é grande. Daí defendermos que apesar de as linhas de crédito serem úteis não devem ser consideradas prioritárias.
Será inevitável avançar com novos apoios, mas com outros moldes?
A crise pandémica foi transversal e assistimos ao encerramento de algumas atividades em determinados períodos de tempo, agora é preciso ver que setores é que, por uma questão de matérias-primas, têm parado e pensamos que é nesses setores que deve ser permitido o layoff simplificado. Outro aspeto fundamental, tendo em conta o peso que o Estado português tem na economia, é permitir a atualização dos contratos que existem com o Estado. Há muitas obras na área da construção, por exemplo, que com a subida dos preços das matérias-primas não é realista, neste momento, ter a situação que existe em termos dos contratos. E há outras áreas de serviços do Estado, por exemplo, os preços das refeições nas cantinas. Para as empresas que trabalham nessa área poderem ter viabilidade, o Governo tem de ajustar os preços.
Defendeu recentemente o IVA zero nos cereais ou pão. Poderá ser esse o caminho? Mas o Estado irá perder receita fiscal?
Estamos numa situação de emergência e o Estado tem de encarar isso e contar com perdas em algumas áreas. Ao mesmo tempo, vai ter de investir em outras para manter o tecido económico a funcionar para que possa recuperar receitas com a recuperação económica. No fundo é uma situação de emergência diferente e com características distintas face ao que se viveu na pandemia. Por isso, as medidas não têm de ser exatamente as mesmas.
Já apresentou estas propostas ao Governo?
Temos apresentado estas propostas, mas, com esta transição, só na semana passada é que começámos os contactos com o novo Governo.
Poderá haver alguma abertura?
O Governo tem feito algumas aberturas em termos de redução do IVA, nomeadamente nas rações para animais e outros. Pensamos que esta área dos produtos essenciais justifica-se, pelo menos, baixar o IVA em determinados produtos básicos, uma vez que é importante em termos do consumidor. Mesmo que em termos de empresas seja neutro.
Se não houver essas mudanças, há empresas que correm o risco de fechar portas?
Se nada for alterado, tendo em conta que o nosso tecido empresarial é frágil, é natural que possam surgir dificuldades, mas ainda é muito cedo para se notar esse risco. Mas por isso é que também foram tomadas essas medidas: para tentar evitar esse risco.
E tem números de quantas empresas fecharam por causa da pandemia?
No comércio não alimentar houve alguns encerramentos, mas as estatísticas em Portugal nessa área são muito fracas. Não há estatísticas do INE, há dados sobre as insolvências, mas estas são uma parte ínfima das empresas que encerram. A maior parte das empresas que encerram pagam as suas dívidas aos trabalhadores e não entram num processo judicial de insolvência. Mas na restauração há quem fale de uma quebra de 20 a 30%.
Em termos culturais ainda há vergonha em dizer que vão fechar.
A maior parte fecha as portas e paga o que tem a pagar e quem não tem essas condições negoceia com os fornecedores ou com os trabalhadores, nem que seja parte da dívida. Às vezes os trabalhadores preferem que lhes paguem parte do que deixarem arrastar a situação.
Um dos problemas do setor tem sido a falta de mão-de-obra. É um assunto que continua em cima da mesa?
O problema continua em cima da mesa e não passou para primeiro plano porque a grande preocupação é saber se há condições de trabalho, mas a falta de mão-de-obra, especialmente qualificada, é um problema importante e que tem a ver com a demografia. Portugal é um dos países europeus que está com maior crise demográfica, penso que só Malta está à frente de Portugal nesses rácios.
A vinda de refugiados ucranianos poderá resolver, em parte, este problema?
Não será suficiente. Para já, dentro dos refugiados há uma percentagem grande de crianças. É evidente que é positivo este movimento de solidariedade na Europa, mas é uma imigração um bocado específica. Também traz pessoas qualificadas, pessoas que podem, neste momento, desempenhar determinadas funções, mas é um acréscimo marginal. É claro que esse movimento tem significado, até em termos políticos, acho que a Europa fez bem em facilitar. Até porque em Portugal há uma tradição de imigração ucraniana com sucesso e desse ponto de vista é positivo, mas está muito longe de conseguir suprir as necessidades.
Esta terça-feira houve eleições na CCP, em que só foi apresentada houve uma lista. Chegou a dizer que não estava a pensar em recandidatar-se mas acabou por avançar…
Falei com todas as pessoas que estavam próximas e disse-lhes que o meu ciclo estava terminado, mas fizemos esta alteração de estatutos que foi uma alteração de fundo porque os órgãos sociais da CCP, em particular a direção, tinham de estar repartidos obrigatoriamente por três setores: comércio local e regional, comércio vertical nacional – como as farmácias, automóvel, etc. – e os serviços, mas entretanto, como temos crescido muito nos últimos anos na área dos serviços, criámos quatro setores, em que dividimos os serviços em serviços ao consumidor e serviços às empresas. Isto originou uma alteração grande nos estatutos. Também reduzimos algumas estruturas operacionais, criámos um conselho geral com algum poder decisório, o que mostra que foi uma alteração muito complexa e fiquei quase refém dessa situação. É difícil reconstruir toda a estrutura agora e chegaram-me a dizer ‘és o pai da criança, agora vais ter que a pôr a andar’. Por outro lado, também se criaram outros órgãos executivos mais ágeis e com menos pessoas para se poder descentralizar. Uma das questões históricas das confederações é que estão muito focadas no presidente.
Vai agora para o quarto mandato. Que balanço faz?
Definimos alguns objetivos quando iniciámos, que era apanhar o caminho da economia, sem abandonar o comércio que faz parte do nosso código genético, enfatizar o crescimento na área dos serviços. Também quisemos ter um papel mais ativo na concertação social e dedicamos bastante atenção nessa área e isso levou-nos a realizar os acordos que foram possíveis fazer e mesmo aqueles que não foram possíveis permitiram trabalhar em conjunto. Em terceiro lugar, tínhamos como grande preocupação o equilíbrio financeiro da confederação porque estas confederação não têm estruturas muito pesadas, mas o facto de termos de responder ativamente na área fiscal, na área jurídica, na área laboral, na área legislativa obriga a desafios, mas conseguimos manter as finanças da confederação equilibradas, mas ainda falta encontrar novas fontes de financiamento que nos permita ultrapassar o demasiado peso que tem na nossa atividade o facto de sermos um organismo intermédio na gestão da formação de projetos europeus.
E esse é um dos desafios do próximo mandato?
Criar novas fontes de financiamento que, não é que a situação se altere, mas ficar menos dependente dessa área de gestão como organismo intermédio na formação. Por outro lado, pretendemos continuar a desenvolver este projeto do conselho das confederações que foi uma proposta da CCP 2010 e que demorou 10 anos a concretizar-se. Mas foi um passo importante para se começar a trabalhar em conjunto. Além disso continua a existir um défice de comunicação, muitos não associam a CCP a algumas áreas do comércio e desconhecem que temos os transportes, o setor automóvel, os serviços às empresas – desde a limpeza, aos seguranças, passando pelo software – e temos de investir nessa mudança.
Mas é mais desafiante este novo mandato devido ao clima de incerteza?
É. Mas também é difícil fazer planos a longo prazo. É possível definir linhas de ação, mas definir objetivos muito quantificados é complicado.