11 de Fevereiro, 2025
Grande parte dos programas atuais não valoriza devidamente o papel dos principais atores que “fazem cidade”. Ou seja, não parece estar assumido com o relevo desejável que o sucesso das ações preconizadas depende, em grande medida, de um trabalho cooperativo
As atividades de comércio e serviços sempre desempenharam um papel essencial no desenvolvimento das cidades. Elas são, reconhecidamente, um dos principais fatores de qualidade urbana. Surpreende, por isso, que essa estreita interação não seja levada em devida conta ao nível das políticas públicas. De facto, as políticas de comércio e serviços e as políticas de cidade, quando existem, pouco se articulam entre si. A verdade, contudo, é que as políticas que procuram dar resposta aos grandes desafios que as cidades enfrentam não podem ignorar o papel do comércio e dos serviços, na sua diversidade e complexidade atual. As atividades de comércio e serviços têm sido alvo de transformações profundas, nomeadamente no que se refere à expansão do comércio eletrónico, das plataformas de recursos que combinam as componentes física e digital ou, ainda, dos serviços com elevada intensidade de conhecimento, com claras implicações logísticas e, de um modo mais geral, na organização das cidades e na vida urbana. Paralelamente, têm ganho uma importância crescente as perspetivas de “fazer cidade” a partir dos conceitos de proximidade (física, temporal e sociocultural), multifuncionalidade e policentrismo. Uma cidade mais circular, de circuitos curtos e próxima dos cidadãos, tem na multifuncionalidade da rua, do bairro e do conjunto da aglomeração urbana a sua essência. Funções como a habitação e o comércio/serviços devem por isso coexistir, sendo o potencial das sinergias decorrentes dessa interação a base para a formação de ecossistemas inovadores e inclusivos com a comunidade local. Temos de evoluir do conceito de smart city para o de smart living, assim criando, simultaneamente, valor económico, social, cultural e público. Se as atividades de comércio e serviços são uma dimensão crucial da vivência e do desenvolvimento urbano, elas não podem deixar de fazer parte das estratégias e políticas de inovação de construção das cidades. Como integrar, então, as políticas de comércio e serviços nas políticas de cidade e como concretizar a visão de cidade enquanto ecossistema de bens e serviços pensado numa base colaborativa, envolvendo “quem faz cidade”? Este foi o debate desenvolvido no âmbito do Observatório “Serviços, Competitividade Urbana e Coesão Territorial”, integrado na CCP – Confederação do Comércio e Serviços de Portugal, em que os subscritores deste texto participaram. Desse debate resultou uma ideia-chave, a necessidade de estimular uma visão integrada entre o planeamento e requalificação/regeneração dos espaços urbanos e as atividades de comércio e serviços, e uma iniciativa principal, a criação de um Programa de Apoio à Regeneração e Requalificação Urbana orientado por uma filosofia de “urbanismo comercial”. As orientações estratégicas para a política de cidades presentes no Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (PNPOT) salientam a relevância do comércio e dos serviços para o planeamento do território e estabelecem diretrizes para os vários instrumentos de gestão territorial, designadamente os programas e planos intermunicipais, e ainda para o desenho de políticas urbanas. O PNPOT sublinha, também, que os documentos estratégicos exigidos no âmbito das designadas “abordagens integradas de base territorial” e da contratualização de fundos comunitários devem ser enquadrados por estratégias formuladas no contexto de figuras de planeamento intermunicipal ou, na sua ausência, por exercícios de integração supramunicipal das estratégias dos planos diretores municipais dos territórios abrangidos. O objetivo deste procedimento é melhorar a articulação entre instrumentos de gestão territorial e instrumentos de financiamento comunitário, assegurando uma maior racionalidade do sistema no seu todo. Contudo, estas orientações nem sempre têm uma tradução clara nos documentos estratégicos das Comunidades Intermunicipais (CIM) e das Áreas Metropolitanas (AM), designadamente nos que foram elaborados no contexto do Portugal 2030 (PT2030). Em face desta lacuna, propõe-se que se incentive a realização de Cartas Estratégicas de Urbanismo de Comércio e Serviços por parte das CIM e das AM, onde sejam identificadas as áreas que deverão ser objeto de projetos de regeneração e/ou requalificação urbana e que incluam diagnósticos prospetivos dos seus sistemas de comércio e serviços a partir de uma visão de futuro construída de forma colaborativa. Estas cartas são um instrumento imprescindível para que os poderes públicos avaliem os pedidos de licenciamento de novos empreendimentos, permitindo-lhes também atuar ao nível quer do aconselhamento, quer da promoção ou do desincentivo à instalação de novos estabelecimentos, de acordo com preocupações de equilíbrio e de diversificação do sistema e da geografia comercial. Por outro lado, e tanto quanto se sabe, o PT 2030 não inclui qualquer ação no sentido de reforçar a articulação entre políticas orientadas para o comércio e serviços e políticas de cidade. Ao mesmo tempo, e de forma mais genérica, verifica-se que uma grande parte dos programas atuais não valoriza devidamente o papel dos principais atores que “fazem cidade”. Ou seja, não parece estar assumido com o relevo desejável que o sucesso das ações preconizadas depende, em grande medida, de um trabalho cooperativo ao nível da sua conceção e execução, e da posterior adoção de modelos de gestão integrados e colaborativos. É esta dupla ausência que justifica a proposta de criação de um Programa de Apoio à Regeneração e Requalificação Urbana orientado por uma filosofia de urbanismo comercial, a inserir nos Programas Operacionais Regionais. No âmbito desse programa poderão ser apoiados investimentos associados a projetos de regeneração e requalificação urbana que incluam: (i) ações que visem concretizar políticas de planeamento urbano pré-existentes, promovendo uma maior integração de ações setoriais orientadas para o comércio e serviços nessas políticas e assegurando, ao mesmo tempo, uma maior convergência em torno de objetivos transversais de natureza ambiental, digital e de mobilidade; e (ii) ações de requalificação e inovação do comércio e serviços previstas em políticas de planeamento comercial (cartas estratégicas de urbanismo de comércio e serviços). As candidaturas serão apresentadas pelas CIM e pelas AM, mas as intervenções terão uma incidência geográfica delimitada, ajustada às necessidades específicas que cada município entenda como mais conveniente. O conjunto de ações a apoiar nas áreas de intervenção deverá basear-se num protocolo estabelecido entre os municípios e estruturas associativas representativas de comércio e serviços (incluindo turismo), de forma a assegurar que os princípios de uma filosofia de urbanismo comercial estão efetivamente presentes em todas as ações a promover. Com a expansão urbana e o aumento da procura por espaços comerciais, é essencial garantir que a estrutura de comércio e serviços seja planeada de forma eficiente e sustentável, correspondendo a um modelo de cidade desejada. É também fundamental assegurar a regeneração e requalificação de áreas urbanas consolidadas e o reforço de pequenos polos em bairros residenciais mal apetrechados por oferta de bens e serviços. Em ambas as situações, a abordagem ao território terá de ser efetuada integrando bons princípios de urbanismo e estratégias de eficiência coletiva, por definição multidisciplinares e multi-ator. Só assim será possível transformar os vários ecossistemas de comércio e serviços em fatores catalisadores de qualidade de vida nas cidades e de desenvolvimento urbano. Mais do que uma nova geração de urbanismo comercial, precisamos de modos de fazer cidade e de políticas urbanas que reconheçam o papel crucial que as atividades de comércio e serviços, em rápida e profunda transformação, desempenham e irão desempenhar nas sociedades e economias contemporâneas. * José Félix Ribeiro, economista; João Ferrão, geógrafo e ex-secretário de Estado do Ordenamento e Cidades; Paulo Fernandes, Presidente da Câmara Municipal do Fundão ❉
https://insight.carma.com/a/1a838053-762f-479f-b274-f281c317802f